A seguir, citamos três mitos da tradição Tupi-Guarani, ligados àquela cosmovisão, contados por Kaká Werá Jacupé em encontros diversos. Em tais mitos pudemos depreender alguns paralelos na cosmovisão antroposófica, os quais estão descritos logo após a apresentação dos referidos mitos.
Introdução
Rudolf Steiner ressalta no texto acima citado a importância do mito, afirmando que não se trata de meras fantasias, ou seja, eles contêm verdades ligadas aos mais profundos mistérios e aspectos da humanidade. A seguir, citamos três mitos da tradição Tupi-Guarani, ligados àquela cosmovisão, contados por Kaká Werá Jacupé em encontros diversos. Em tais mitos pudemos depreender alguns paralelos na cosmovisão antroposófica, os quais estão descritos logo após a apresentação dos
referidos mitos.
a) A Criação (1)
“Tupã cria a Mãe Terra e desenha nela as formas futuras: montanhas, lagos, rios. Agora, precisa de alguém para continuar o trabalho de criação. Ele cuidou das grandes coisas: criou o primeiro ser humano, Tupi-mirim, que significa “pequeno criador”.
“Esse primeiro ser humano não consegue habitar o mundo físico. Ele retorna a Tupã e diz que não consegue. E ele não consegue porque ele é etéreo, alado, luminoso, semelhante a um pássaro. Então, ele pergunta a Tupã: ‘Como faço para habitar esse mundo?’”
“Tupã responde: ‘procure nas quatro direções. Em cada direção você vai encontrar um mestre, que irá ensiná-lo como habitar esse mundo físico’.”
“Tupã-mirim retorna à Terra e saindo do Nascente vai ao Poente. Lá ele encontra uma pedra, e diz para ela: ‘pedra você pode me ensinar a viver aqui na terra?’ E ela diz: ‘claro que posso. Entra em mim, que você vai aprender’. Ele entra na rocha e medita na terra, pois a rocha faz meditação. Ele experimenta o corpo físico da rocha e diz: ‘ah então é isso que é viver na terra!’ E aí a rocha diz: ‘muito bem, você já aprendeu, agora pode sair’.”
“Depois ele vai em direção ao Sul, onde encontra uma palmeira (a palmeira é muito significativa na tradição). E aí ele fala para a palmeira: ‘como é que eu faço para habitar essa terra?’. Ela fala: ‘entra em mim que você vai aprender’. Ele entra e se torna à palmeira, se enraíza na terra. Então ele fala: ‘Ah isso é que é viver na terra?’ E depois a palmeira responde: pronto, você já aprendeu, agora busque outros mestres.”
“Aí, ele vai ao Norte, ao oposto, onde uma onça, que ele nunca tinha visto. Ele fala para ela: ‘você pode me ensinar a viver nessa terra?’ Ela diz: ‘claro, entre em mim’. E aí ele se torna uma onça. Pela primeira vez ele caminha pela terra, sente o cheiro, vê, corre. Então ele fala: ‘ah, então é isso!’ E a onça diz: ‘ pronto, você já aprendeu. Pode sair, siga seu caminho’.”
“Então , ele sai da onça e vai em direção a uma montanha, no Leste, e olha no alto da montanha vê uma gruta. Ele sobe. Daquela gruta sai uma luz de dentro dela. Ele entra na gruta e vê que aquela luz que ele via sai de uma serpente prateada. Uma serpente que não causava medo, mas serenidade. Ele fala: ‘você pode me ensinar a viver aqui na Terra’ Ela diz: ‘claro, eu sou o espírito da Terra.’ ‘Como faço par viver aqui’? A serpente vai caminhando em círculos, acumulando do chão um barro, e vai formando duas pernas, quadris, tronco, braços, um molde, que é o do primeiro ser humano. A mãe terra diz: ‘entra aqui que você vai aprender a viver na terra’. Ele encaixa naquele molde. E aí a mãe terra coloca dois cristais que são os olhos e aí fala: Vai lá fora que você verá o que é a terra. Quando ele sai, olha do alto da montanha e acha tudo maravilhoso, porque ele ainda não tinha visto a terra com olhos cristalinos. Tinha visto com olhos de onça, que é diferente. ‘Nossa, muito interessante’. E sente os pés na terra.”
“A mãe terra diz: ‘junto com o que te dei, você está levando meus dons. Os dons da terra, da água, do fogo e dos ventos.” “E o que faço com esses dons?”, pergunta Tupã-mirim.”
“Você tem quatro dons da minha influência. Com esses dons você me ajudará no mundo a fazer novas formas de vida. O que você quiser”, disse a serpente. “Além dos quatro dons, você recebeu também o dom de Nhandecy – dom de Tupã – e juntando os dons, você será imbatível”, completou a serpente.
“Como é isso? Onde está o dom de Nhandecy?”, perguntou Tupã-mirim.
“Está nas palavras”, respondeu a serpente. E completou: “e atenção, cuidado com o que pensa e com o que fala, pois o que você pensar e falar irá acontecer.”
E então ele desceu a montanha com os dons da Terra e com os dons do Céu. E experimentou o seu ‘poder’ dizendo: “arara”, e surgiu a primeira arara. Disse, então “urkurea” e apareceu uma coruja. E assim foram surgindos os pássaros e ele viu que tinha o poder da palavra. E continuou, dizendo: “jacaré” e apareceu o primeiro jacaré. E assim aconteceu com os peixes, plantas, animais.
Passado algum tempo, ele retornou à gruta e falou: “Mãe Terra, vim devolver o corpo e os dons que você me deu para viver na terra.”
E ela respondeu: “pode ficar com esse presente, esse corpo, estar sempre assim”.
Ele diz:” eu tive a onça, a palmeira e a pedra e tudo isso eu devolvi. Já aprendi a viver aqui e agora quero voltar para a terra de meu pai.”
A Mãe Terra diz, então, para Tupã-mirim que ele pode ficar com o corpo o tempo que quiser e que, quando se cansar, pode fazer uma cova e lá deixá-lo. Isto poderia ser feito em qualquer lugar, não precisaria volta lá para devolvê-lo.
Kaká Werá esclarece: “essa parte do mito está dizendo que cada um deles elementos: a palmeira, a rocha, a onça fazem parte do mundo material, são agregados materiais, que sustentam nosso ser e quando a gente morre esses agregados se desfazem, o que é da terra vai para a terra, o que é animal vai para animal, vegetal para vegetal, mas algo permanece, que é o ser.”
“Essa parte do mundo fala muito isso: o ser humano é criado no mundo, o mundo de cima, que é o mundo luminoso, etéreo e para viver na terra tem que descer níveis e para isso ele é recebido pela corte da mãe terra, que trabalha com a realidade dos mundos físicos. Por isso os povos reverenciam tanto as quatro direções, porque são simbólicas, porque representam forças que configuram o mundo físico, que é a força dos elementos: terra, água, ar e fogo, organizam e configuram o mundo físico. e tem as três fases que o homem passa para se tornar humano: o mineral, o vegetal e o animal. E ai quando ele morre no mundo físico, na verdade, são essas fases se desagregando.”
Ele retorna para Araimá, o mundo verdadeiro, a essência divina, Kuaracy (aspecto que Emana) ou Ñamandu (representa aspecto que agrega), mas os dois são os mesmos seres.
O Mito da Criação Tupi-guarani e a concepção antroposófica do ser humano
Todo o percurso pelo qual o personagem teve de passar, descrito nesse Mito da Criação indígena, ou seja, pelos reinos mineral, vegetal, animal e finalmente tornar-se um ser humano pode encontrar um paralelo na cosmovisão antroposófica.
Rudolf Steiner mostra os diversos estágios pelos quais o ser humano passou até chegar à forma que possui hoje na Terra, considerando a aquisição de seus vários “corpos”: físico, etérico, astral e o ‘eu’, até chegar a sua configuração atual.
No livro “A Ciência Oculta”, Steiner esclarece detalhadamente todo esse processo e, mais resumidamente, podemos citar:
“No mesmo sentido em que o homem tem seu corpo físico em comum com os minerais e seu corpo etérico com as plantas, em seu corpo astral ele é da mesma espécie que os animais.” (Steiner, R., 2006, p. 48-49).
Mais adiante, sobre ‘eu’ humano, que no mito indígena podemos identificar naquele momento em que o personagem recebe os olhos de cristais, Rudolt Steiner afirma:
“O quarto membro que o conhecimento supra-sensível atribui à entidade humana já não é compartilhado com o mundo manifesto em redor do homem. Trata-se justamente do que o diferencia dos demais seres – algo que o torna o ápice de toda a Criação circundante. O conhecimento supra-sensível dá uma idéia desse membro adicional da entidade humana indicando que também no âmbito das vivências de vigília existe mais uma diferença essencial. Essa diferença se evidencia de imediato à observação de que, em estado de vigília, de um lado o homem se encontra continuamente no centro de vivências que têm necessariamente de ir e vir e, de outro, também tem vivências em que isso não ocorre. Tal fato ressalta especialmente aos se compararem as experiências do homem com as do animal. O animal experimenta com grande regularidade as influências do mundo exterior e, sob a influência do calor e do frio, adquire consciência da dor e do prazer, bem como, sob certos processos regulares que ocorrem em seu corpo, adquire consciência da fome e da dor. A vida do homem não se esgota em tais experiência, pois ele pode desenvolver cobiças e desejos que transcendem tudo isso.”
“Tratando-se do animal, sempre é possível – desde que se investigue suficientemente – descobrir onde, dentro ou fora do corpo, existe o motivo determinante de uma ação ou sensação. No caso do homem, isso não ocorre de maneira alguma. Ele pode criar desejos e apetites para cuja origem não haja suficientes motivos nem dentro nem fora de seu corpo. A tudo o que incide nesse domínio deve-se atribuir uma fonte especial. Essa fonte pode ser vista, segundo a ciência supra-sensível, no ‘eu’ do homem. O ‘eu’ pode, portanto, ser considerado o quarto membro da entidade humana” (idem, pp.49-50).
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